segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Haruki Murakami - Norwegian Wood

A morte existe, não como o oposto da vida mas como parte dela” (página 40)


Este foi o primeiro livro de sucesso de Haruki Murakami, publicado em 1987. O título é inspirado numa canção dos Beatles, com o mesmo nome (do álbum de 1965, Rubber Soul) que descreve um caso extraconjugal de John Lennon. A canção apresenta cítaras indianas, bastante melancólicas, e é conhecida pelas suas referências à espiritualidade oriental. A história começa num aeroporto de Hamburgo, onde essa música está a passar nos altifalantes e a partir daí Toru Watanabe (o narrador do livro) começa a refletir sobre a sua vida nos anos 60.

Aos 17 anos, Toru tinha uma relação formidável com o seu melhor amigo, Kizuki que era o alicerce da sua existência, a sua melhor companhia. Numa noite, sem ninguém prever, Kizuki suicida-se. Este é o acontecimento que muda o dia-a-dia de Toru e que potencia uma alteração na forma como este encara o mundo e a vida.

Toru acaba por criar uma forte relação com Naoko, a namorada de Kizuki, por quem se apaixona. Porém, Naoko nunca ultrapassou bem a morte do seu namorado e acaba por ser institucionalizada numa espécie de sanatório moderno, meio alternativo (o sanatório é claramente uma alusão à obra-prima de Thomas Mann, “A Montanha Mágica”, de 1924).

De seguida, acompanhamos Toru na sua entrada na universidade, a lidar com todas as emoções e dúvidas típicas desta fase, e a sua difícil adaptação a esta nova realidade. Durante estes anos da faculdade, Toru conhece Midori, uma rapariga muito especial e excêntrica que se torna a sua melhor amiga.

As paixões de Toru (Naoko e Midori) representam duas forças em confronto: Naoko é a tradição, a calma, a paz. Midori é o futuro, a ambição, a excitação do progresso e do desconhecido. Entre estes dois polos, Toru procura a sua liberdade, a sua afirmação.

A famosa geração de sessenta, também no Japão, vivia numa encruzilhada: os movimentos estudantis em confronto com a geração conservadora dos pais, a geração saída da segunda guerra mundial. Este conflito de gerações (que se sentiu também na Europa) colocava em confronto aqueles que viveram a guerra e construíram a recuperação económica com base numa disciplina férrea e os filhos, protegidos pelos pais mas educados nessa disciplina, condição essencial para o grande objetivo de construir a riqueza material. Foi uma época em que o Japão adotou o modo de vida ocidental, uma época em que as pessoas ouviam Bill Evans, liam Thomas Mann e bebiam muito café.

Ao longo da obra, Murakami encara estes jovens rebeldes (com os quais Toru não se identifica) como pessoas pouco esclarecidas, para quem a rebeldia era um instrumento de afirmação, mais do que de defesa de determinados ideais. A revolta contra a guerra do Vietname ou contra o sistema universitário eram apenas argumentos para uma geração sem ideais.

Se já não bastasse a qualidade da história, Murakami impõe um verdadeiro arsenal cultural em termos de literatura, música e cinema: é uma espécie de charme a mais na literatura dele, com muitas referências musicais e literárias, que permitem ao leitor aproveitar muito além da história e das personagens. Esta é sem dúvida outra das razões pelas quais as obras deste autor me cativam tanto.


 
(Playlist bastante completa das referências musicais)

O livro é extraordinariamente envolvente. Todas as suas personagens são profundas e muito bem construídas. Sem o misticismo e a fantasia dos seus romances posteriores, Murakami constrói um enredo bem mais real e linear que envolve o leitor numa espécie de solidariedade para com Toru. Talvez este personagem tenha bastante de autobiográfico; no entanto, os dilemas de Toru (os amores, as opções de vida, a forma de encarar o futuro e o passado) são os dilemas de todos nós. Por isso nos revemos nele. Como diz Reiko (a voz da razão neste livro): “todos somos imperfeitos num mundo imperfeito” e, por isso, não devemos encarar os nossos dilemas com demasiada seriedade. A vida exige leveza – essa leveza do ser que Murakami transporta de forma encantadora em todos os seus livros.

A escrita é muito clara e objetiva, sem floreados nem metáforas. Em algumas partes, parece mesmo “crua”. É também um livro com uma carga sexual bastante forte mas que dá, de certa forma, veracidade à história - estamos a falar da vida de um adolescente. Aborda temáticas muito fortes como o suicídio, a transição para a vida adulta e o sentido da vida pois mostra-nos como devemos sempre continuar a lutar pela vida, mesmo quando não parece valer a pena. De sermos resilientes e de lutarmos por nós, quando todas as forças nos puxam no sentido inverso.




A adaptação do livro para cinema foi feita por Anh Hung Tran em 2010, e não há grandes surpresas: o guião é muito centrado na obra original do início ao fim, o resultado final é interessante mas tem a desvantagem habitual de muitos factos relevantes serem esquecidos. Neste caso, e como as personagens são extremamente complexas só nos detalhes que constam do livro é que percebemos melhor a personalidade de cada um deles. No entanto, o filme vale a pena ser visto também pelo desempenho Ken’ichi Matsuyama e Rinko Kikuchi, os atores que interpretam os protagonistas. A banda sonora privilegia os saudosos CAN e The Doors.