segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Gonzalo Torrente Ballester - Crónica do Rei Pasmado


A “Crónica do Rei Pasmado” tem como cenário a Espanha do séc. XVII, época dominada fortemente pela Inquisição. Trata-se de uma sátira brilhante e mordaz em que Ballester, numa narrativa bastante humorada, expõe a hipocrisia que germina nas classes detentoras de poder, expondo características psicológicas e comportamentos, descarnando personagens que vão desde os altos cargos do clérigo (aqui destacaria especialmente o ambicioso e implacável padre Villaescusa) às simples “marafonas”.

Esta estória, onde se encontram disseminadas numerosas piscadelas de olho à História, inicia-se com uma visita do ingénuo e inseguro Rei Filipe IV de Espanha, III de Portugal, na altura com 20 anos, “às meninas”, ajudado pelo amigo, conde Peña Andrada. Deslumbrado com a visão da meretriz Marfisa totalmente nua, com a perfeição das suas curvas e após “4 cópulas e um fracasso”, que constituem o “limite que os teólogos põem aos exageros da carne”, mete na cabeça que há-de observar a nudez da Rainha (Isabel de Bourbon) e não se inibe de manifestar publicamente esse desejo.

Ora, os severos costumes impostos pela Inquisição impedem o Rei de manter um relacionamento íntimo com a Rainha e assim a Igreja imediatamente salta em defesa do pudor, da reserva e dos bons costumes, e dá-se uma feroz luta pelo poder entre aqueles que lhe estão próximos, o que origina posições antagónicas. Por um lado, os súbditos que defendem que o Rei não podia ver a esposa nua: “O homem pode aceder à mulher com fins de procriação e, se os seus humores lhe exigirem, para os acalmar, mas nunca com intenções levianas, como seria a de contemplar nua a própria esposa” (página 44); “Acha que a Graça do Senhor se manifesta no coito? Ou na contemplação desses horríveis penduricalhos das fêmeas que se chamam peitos? Ou prefere que a contemplação se verifique pelas costas, evidentemente contra natura?” (página 67). Numa posição contrária, assume-se que o Rei tem toda a legitimidade para observar a nudez da esposa “…porque de camisas de noite cumpridas e de disputas para que as levantem um pouco mais, estamos nós tão cansados como elas” (página 50).

Adicionalmente e em relação ao primeiro grupo mencionado desenvolve-se a ideia de que, ao deixar-se o Rei levar a sua avante, será o povo inocente que pagará pelos seus pecados e por isso a Espanha perderá a guerra que está a travar nos Países Baixos e, de igual modo, a frota oriunda das Índias não chegará em segurança ao porto de Cádis.

O Santo Tribunal da Inquisição entra em cena, são criadas quatro comissões para solucionar o problema (o que mostra que isto de criar comissões já é um fenómeno bastante antigo), aparece um padre jesuíta português, a prostituta Marfisa é perseguida por “suspeitas de endemoninhamento”, encontramos uma Rainha com uma camisa de noite recomendada pelos clérigos por conter a expressão “Vade Retro Satanás” e um primeiro-ministro Valido que considera que “deitar com judias é melhor que queimá-las” e a quem no trono interessa um Rei fragilizado, sem voz activa. Até ao final assiste-se a muitos debates teológicos, querelas populares e intrigas palacianas num ambiente onde o “cheiro a enxofre corrobora a presença do Diabo”.


Tive curiosidade em assistir à versão cinematográfica do filme (El Rey Pasmado, de 1991), realizada por Imanol Oribe, e constatei que se trata de uma fiel reprodução de toda a obra embora em jeito de peça teatral onde, tal como acontece com o livro, se saboreia uma linguagem colhida directamente da época. Além disso, observa-se uma minuciosa reconstituição dos objetos, traquejos e vestimentas bem como a transposição da ideologia existente no período histórico considerado. Conta com a participação do português Joaquim de Almeida entre diversos actores espanhóis. Não resisto a mencionar o pormenor delicioso relacionado com a cara aparvalhada do Rei, cujo actor no filme (Gabino Diego) é incrivelmente semelhante ao retrato do Rei Filipe IV, feito em 1623 pelo precursor do impressionismo Diego Velázquez e que abaixo se reproduz.

Também não resisto a comentar a primeira cena do filme: um padre observa no telescópio corpos celestes e, para sua surpresa, vê corpos femininos, nus, girando no espaço e em volta do que se supõe ser o Sol. Tal visão enuncia a transformação que sucederá ao final da trama. Esta cena diz respeito à descoberta de Galileu Galilei: a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, como dizia a Igreja.

O filme mostra que no confronto das duas formas de se interpretar a realidade, a dogmática e a científica, a grande maioria das personagens retratadas demonstra ter consciência da não relação entre o pecado do rei e a derrota de uma batalha.

2 comentários:

Unknown disse...

Carlos
Como habitualmente gostei da tua análise literária, ou como preferes, da tua opinião. Já li Ballester (Filomeno) mas não esta obra. Logo que possa vou lê-la e também ver o filme. Temos que recomeçar com as nossas tertúlias, pois davas-me sempre boas indicações com as tuas apresentações, apesar de serem um pouco longas :)
Neste momento estou a ler “O Filho” de Philip Meyer e na lista de espera está o “Pintassilgo”, que sei que adoraste…

Numa de Letra disse...

Acabadinho de ler...

http://numadeletra.com/cronica-do-rei-pasmado-de-gonzalo-65578