Protagonizado por uma jovem de 18 anos, “Milkman”, a obra vencedora do Man Booker Prize de 2018, é uma “história de brutalidade, resistência e invasão sexual, tecida com um humor mordaz”, e embora nada seja declarado abertamente, situa-se nos anos 1970, na Irlanda do Norte, durante o conflito conhecido como “The Troubles”. Assim, para compreender esta história é fundamental recordarmos em que consistiu aquela disputa:
- de um lado, os lealistas (nacionalistas) - a maioria protestante que defende a manutenção dos laços políticos com a vizinha ilha da Grã-Bretanha, igualmente protestante, e a consequente manutenção da Irlanda do Norte no seio do Reino Unido;
- do outro lado, os integracionistas (unionistas) - a minoria católica que advoga a integração da “província” na República da Irlanda, predominantemente católica, com quem partilha o território da ilha. Exigem também a igualdade religiosa, nomeadamente a não discriminação da minoria católica no acesso a cargos públicos ou empregos.
Os católicos sentem-se, pois, uma minoria marginalizada, com direitos diminuídos face à maioria protestante. E isso alimenta um compreensível mas perigoso sentimento de revolta. Foi nesse contexto que entrou em cena o grupo paramilitar católico IRA (Irish Republican Army – Exército Republicano Irlandês). Lutou pela separação da Irlanda do Norte do Reino Unido, defendendo a anexação à República da Irlanda recorrendo a métodos terroristas, incluindo ataques bombistas e emboscadas com armas de fogo contra alvos protestantes – de políticos unionistas (protestantes) a representantes do governo britânico.
Escrito de uma forma muito original, “Milkman” descreve a relação entre aquela jovem - que não tem nome, ninguém no livro tem nome, todos são referidos por relações, funções ou características, incluindo todos os locais (países e cidades) - e um homem mais velho, que a assedia sexualmente – o famigerado “leiteiro” anunciado no título –, o que leva ao surgimento de um rumor, rapidamente espalhado pela cidade, de que os dois têm um caso. O boato destrói, insidioso, as relações da narradora.
A jovem é referida como a irmã do meio, e fala da família da mesma forma: a mãe, a primeira irmã, a segunda irmã, a terceira irmã, as irmãs pequenas, o primeiro cunhado, o terceiro irmão, etc. Além disso, outros personagens que são importantes na narrativa também são chamados assim, como o namorado “mais ou menos”, a amiga “há mais tempo”, o rapaz da guerra nuclear e o Coiso e Tal. Vive sempre com medo e desconfiança num bairro assinalado como sendo absolutamente anti-governo e onde todos os moradores (mesmo os que não pertencem às “milícias”) são vigiados, fotografados, investigados, apanhados, levados para se tornarem informadores dos “do lado de lá”; onde todas as famílias (incluindo a dela) têm medo (até de ir ao hospital) e perderam pessoas que puseram bombas, ou estavam no sítio errado à hora errada, ou andam fugidas.
Burns conduz-nos pelos pensamentos de uma jovem que se recusa a aceitar o que parece obrigatório e que não pensa em casar-se nem em constituir família. E isso faz dela uma suspeita. Desta forma, esta obra evidencia de forma brilhante o poder da maledicência e a pressão social numa comunidade muito fechada, e demonstra como os boatos e as lealdades políticas podem ser colocados ao serviço de uma persistente campanha de assédio sexual.
A linguagem divertida e inventiva da narradora (que adora ler enquanto caminha por gostar de viver noutros séculos que a literatura lhe oferece) e as travessuras das irmãs mais novas compensam a dureza do ambiente, de uma violência latente, que não nos deixa espaço nem para respirar. Denso e sedutor, torrencial e arrebatador, "Milkman" é o grande romance sobre o desconhecido porque o leitor não sabe quem é o leiteiro, não sabe o que vai acontecer à “Irmã do Meio” e muito menos sabe sobre o fim das hostilidades militares nesta cidade não nomeada.
O confronto entre protestantes e católicos provocou uma violência extrema durante cerca de 30 anos e foi marcado pela manifestação de 30 de Janeiro de 1972, em Londonderry, conhecida como “Bloody Sunday” (morreram 14 manifestantes católicos, com tiros provenientes de soldados ingleses); pelos atentados entre 1972 e 1998, em Guildford, Woolwich e Birmingham, executados pelo IRA e pela morte de Louis Mountbatten, primo da rainha Elisabeth II, em 1979. Finalmente, no dia 10 de Abril de 1998 foi assinado o Acordo de Belfast (ou Acordo da Sexta-Feira Santa) que terminou com “The Troubles” e estabeleceu as bases para um governo de poder partilhado entre católicos e protestantes.
No cinema abundam obras que abordam estas décadas de conflitos e que ajudam a compreendê-los (para informação adicional clicar no nome do filme):
1. Bloody Sunday (“Domingo Sangrento”), 2002, de Paul Greengrass (sobre a tal manifestação de domingo, 30 de janeiro de 1972);
2. In the Name of the Father (“Em Nome do Pai”), 1993, de Jim Sheridan (sobre o atentado no pub de Guilford em 1974 e com o desempenho fantástico de Daniel Day-Lewis);
3. The Boxer (“O Boxeur”), 1997, de Jim Sheridan (que aqui volta a trabalhar com Daniel Day-Lewis);
No cinema abundam obras que abordam estas décadas de conflitos e que ajudam a compreendê-los (para informação adicional clicar no nome do filme):
1. Bloody Sunday (“Domingo Sangrento”), 2002, de Paul Greengrass (sobre a tal manifestação de domingo, 30 de janeiro de 1972);
2. In the Name of the Father (“Em Nome do Pai”), 1993, de Jim Sheridan (sobre o atentado no pub de Guilford em 1974 e com o desempenho fantástico de Daniel Day-Lewis);
3. The Boxer (“O Boxeur”), 1997, de Jim Sheridan (que aqui volta a trabalhar com Daniel Day-Lewis);
4. The Devil's Own (“Perigo Íntimo”), de 1997, de Alan J. Pakula (sobre a fuga do líder do IRA Francis McGuire para Nova Iorque e que conta no elenco com Brad Pitt e Harrison Ford);
5. Michael Collins, 1996, de Neil Jordan (baseado na vida do revolucionário irlandês Michael Collins);
6. Hunger (“Fome”), 2008, de Steve McQueen (decorre em 1981, ano em que um grupo de irlandeses do IRA, liderados por Bobby Sands, iniciaram uma greve de fome na prisão);
7. Some Mother's Son (“Em Nome do Filho…”), 1996, de Terry George (luta de duas mães, sendo uma delas a mãe de Bobby Sands, pela vida dos seus filhos);
8. Shadow Dancer (“Dança das Sombras”), 2013, de James Marsh (na Belfast dos anos 90, uma mulher, membro ativo do IRA, é forçada a tornar-se informadora do MI5 para proteger o filho);
9. Fifty Dead Men Walking (“Na Senda dos Condenados”), 2008, de Kari Skogland (baseado na história real de Martin McGartland, um jovem de Belfast que é recrutado pela polícia para se infiltrar no IRA);
10. The Crying Game (“Jogo de Lágrimas”), 1992, de Neil Jordan (explora temas como o terrorismo na Irlanda, transexualidade e racismo);
11. The Wind that Shakes the Barley (“Brisa de Mudança”), 2006, de Ken Loach (sobre a independência da Irlanda, nos anos 20 do século passado, os primeiros passos do IRA e o acordo que levou à criação da Irlanda do Norte e à criação do estado irlandês);
12. Five Minutes Of Heaven (“Cinco Minutos de Paz”), 2009, de Oliver Hirschbiegel (um membro de um grupo paramilitar protestante mata um católico e 33 anos tarde há um reencontro: um procura a redenção o outro só pensa em vingança);
13. '71, 2014, de Yann Demange (imersão expressionista nas ruas de Belfast de inícios dos anos 70, quando o conflito entre protestantes unionistas e católicos independentistas está ao rubro);
14. Hidden Agenda (“Agenda Secreta”), 1990, de Ken Loach (passado na violenta Belfast dos anos 1980 destacando-se o terrorismo praticado por grupos como o IRA, mas também a resposta que lhe é dada, à margem da lei, pelas forças de segurança britânicas);
15. In America (“Na América”), 2002, de Jim Sheridan (sobre a vida de uma família irlandesa que emigra para Nova Iorque);
16. Odd Man Out (“A Casa Cercada”), 1947, de Carol Reed (história de um membro ativo do IRA que foge da prisão e decide roubar um banco para ajudar a causa);
17. Mickybo and Me, 2004, de Terry Loane (sobre a amizade entre dois meninos de 8 anos, um de uma família protestante e outro de uma família católica e juntos tornam-se grandes admiradores de famosos bandidos do faroeste);
19. Cal (“Tempo de Guerra”), 1984, de Pat O'Connor (um jovem membro do IRA vive um romance com uma mulher católica que viu o seu marido, um polícia protestante, ser morto pela organização terrorista um ano antes de se conhecerem);
20. An Everlasting Piece, 2000, de Barry Levinson (comédia passada em Belfast, nos anos 80, onde um católico e um protestante, ambos barbeiros, tornam-se parceiros de negócios e começam a vender perucas com bastante sucesso).
Na televisão estreou recentemente a série Derry Girls passada na Irlanda da mesma época, uma comédia leve, que tem um tom completamente diferente de “Milkman”.
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