Ian McEwan apresenta uma prosa
habilidosa, onde nenhuma palavra ali está por acaso e os parágrafos sucedem-se
sem artifícios ou truques retóricos. Escrito na terceira pessoa, apresenta-nos uma
história com laços simples, que se tornam complexos com o desenrolar dos
acontecimentos. Os temas centrais são o confronto entre a vida pessoal e a vida
profissional, mas também entre a razão científica e o fundamentalismo religioso.
Utiliza como pano de fundo o sistema judiciário inglês e uma prestigiada juíza
do Supremo Tribunal como protagonista: Fiona Maye, 59 anos, especialista em Direito
de Família, e que de acordo com os seus colegas, possui “uma imparcialidade
divina e inteligência diabólica”. Tornou-se famosa devido a um caso de gémeos ao
aprovar a intervenção cirúrgica que iria separar uns irmãos siameses,
provocando o sacrifício de um deles em benefício da sobrevivência do outro.
Apesar de lidar diariamente com a
razão em detrimento da emoção, decidindo conflitos e dilemas morais através das
suas sentenças, a sua vida pessoal está a passar por uma crise: arrepende-se de não ter
tido filhos e o marido, professor universitário de História, coloca-a numa
posição de escolha entre uma posição passiva sobre um caso extraconjugal com
uma colega do trabalho e o fim do casamento de 35 anos (justificando-se com as suas
necessidades sexuais não atendidas nos últimos tempos por Fiona, obcecada pelo
trabalho).
É neste ambiente que vai parar às
suas mãos um caso de um rapaz, prestes a completar 18 anos, que precisa de uma transfusão
de sangue para o tratamento de leucemia. Este rapaz, Adam Henry, cujos pais são
Testemunhas de Jeová, não aceita aquela solução e está disposto a “morrer como
mártir” pela religião. O momento familiar complicado pelo qual Fiona está a passar
faz com que ignore a necessidade de afastamento emocional na batalha jurídica
que chamará a atenção da sociedade para um debate sobre o bem-estar do
adolescente em confronto com os dogmas religiosos da sua família e assim ela decide
ir visitar o jovem Adam ao hospital. Aqui, constata que este tem uma
compreensão parcial da situação precária da sua saúde e dos riscos associados
e, ao mesmo tempo, uma visão romântica da fatalidade dos efeitos decorrentes da
sua orientação religiosa. Escreve poesias que encantam a equipa médica e
despertam na experiente juíza um sentimento ambíguo de compaixão maternal (ela decidiu
não ter filhos devido à sua carreira) e carência sentimental. Para Adam, “a
religião dos meus pais era um veneno e a Fiona foi o antídoto”.
A música erudita tem um lugar de
destaque neste romance, constituindo uma válvula de escape para Fiona, uma
exímia pianista de peças clássicas de Berlioz e Mahler (no seu belíssimo apartamento
tem um piano Fazioli), e também um ponto de aproximação entre ela e o sensível
Adam Henry. Também se encontram referências a Bach, Schubert e Scriabin e a dois
discos: “Facing You” de Keth Jarrett e “Round Midnight” de Thelonius Monk. Fundamental também é o poema de William
Butler Yeats, “Down By the Salley Gardens”.
Para quem nunca leu nada deste
autor recomendo a leitura de “Amesterdão”, “Expiação” e “Sábado” (preferencialmente
por esta ordem).
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