domingo, 1 de novembro de 2020

Ian McEwan – A Balada de Adam Henry

 

Ian McEwan apresenta uma prosa habilidosa, onde nenhuma palavra ali está por acaso e os parágrafos sucedem-se sem artifícios ou truques retóricos. Escrito na terceira pessoa, apresenta-nos uma história com laços simples, que se tornam complexos com o desenrolar dos acontecimentos. Os temas centrais são o confronto entre a vida pessoal e a vida profissional, mas também entre a razão científica e o fundamentalismo religioso. Utiliza como pano de fundo o sistema judiciário inglês e uma prestigiada juíza do Supremo Tribunal como protagonista: Fiona Maye, 59 anos, especialista em Direito de Família, e que de acordo com os seus colegas, possui “uma imparcialidade divina e inteligência diabólica”. Tornou-se famosa devido a um caso de gémeos ao aprovar a intervenção cirúrgica que iria separar uns irmãos siameses, provocando o sacrifício de um deles em benefício da sobrevivência do outro.

Apesar de lidar diariamente com a razão em detrimento da emoção, decidindo conflitos e dilemas morais através das suas sentenças, a sua vida pessoal está a passar por uma crise: arrepende-se de não ter tido filhos e o marido, professor universitário de História, coloca-a numa posição de escolha entre uma posição passiva sobre um caso extraconjugal com uma colega do trabalho e o fim do casamento de 35 anos (justificando-se com as suas necessidades sexuais não atendidas nos últimos tempos por Fiona, obcecada pelo trabalho).

É neste ambiente que vai parar às suas mãos um caso de um rapaz, prestes a completar 18 anos, que precisa de uma transfusão de sangue para o tratamento de leucemia. Este rapaz, Adam Henry, cujos pais são Testemunhas de Jeová, não aceita aquela solução e está disposto a “morrer como mártir” pela religião. O momento familiar complicado pelo qual Fiona está a passar faz com que ignore a necessidade de afastamento emocional na batalha jurídica que chamará a atenção da sociedade para um debate sobre o bem-estar do adolescente em confronto com os dogmas religiosos da sua família e assim ela decide ir visitar o jovem Adam ao hospital. Aqui, constata que este tem uma compreensão parcial da situação precária da sua saúde e dos riscos associados e, ao mesmo tempo, uma visão romântica da fatalidade dos efeitos decorrentes da sua orientação religiosa. Escreve poesias que encantam a equipa médica e despertam na experiente juíza um sentimento ambíguo de compaixão maternal (ela decidiu não ter filhos devido à sua carreira) e carência sentimental. Para Adam, “a religião dos meus pais era um veneno e a Fiona foi o antídoto”.

A música erudita tem um lugar de destaque neste romance, constituindo uma válvula de escape para Fiona, uma exímia pianista de peças clássicas de Berlioz e Mahler (no seu belíssimo apartamento tem um piano Fazioli), e também um ponto de aproximação entre ela e o sensível Adam Henry. Também se encontram referências a Bach, Schubert e Scriabin e a dois discos: “Facing You” de Keth Jarrett e “Round Midnight” de Thelonius Monk. Fundamental também é o poema de William Butler Yeats, “Down By the Salley Gardens”.

  


Para quem nunca leu nada deste autor recomendo a leitura de “Amesterdão”, “Expiação” e “Sábado” (preferencialmente por esta ordem).





Quanto ao filme, de 2017, que tem como nome alternativo “My Lady” e segue quase à risca o livro com uma realização muito segura e fiável de Richard Eyre, cenários clássicos, guarda-roupa irrepreensível, tudo “very british” incluindo as cabeleiras dos juízes e uma casa maravilhosamente decorada… Rigor britânico num filme jurídico denso e belo onde a paixão da juventude, que tudo arrebata, coloca as convicções morais e uma vida emocional esfrangalhada em enorme turbação. Quem realmente brilha são os atores que encarnam os diferentes pólos de interesse: a sublime Emma Thompson, mostrando na perfeição as oscilações de Fiona, entre a firmeza da sua racionalidade e a insegurança da sua vida interior (o realizador aproveita para abrir a porta aos sentimentos mais profundos de Fiona); Fionn Whitehead, como Adam Henry, ao conseguir exprimir as suas angústias e desejos, os seus dramas e ambições e a precoce mas encantadora maturidade que tanto encantou a Honourable Mrs Justice Maye e, por fim, Stanley Tucci, ator sóbrio a deslizar naquilo que por vezes se designa classe.

O nome original do filme, “The Children Act” (e também do livro), é uma referência à legislação britânica, de 1989, acerca da proteção de menores. É citando essa lei que Fiona fundamenta a sua decisão: “o bem-estar da criança deve ser o principal fator na ponderação do tribunal”.

Um filme que nos deixa desassossegados e cúmplices e esse é o poder que só os grandes filmes possuem.



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