Belíssimo filme do realizador japonês Ryûsuke Hamaguchi: do país do sol nascente, Tchekov (“O Tio Vânia”) visto pelos olhos rasgados das novas cinematografias orientais, um mergulho profundo no coração de cada um. Sem sorrisos, com palavras não verbalizadas e a condição humana e a solidão. A vida que não se repete e a amizade… Um filme a roçar a obra-prima.
Acabado de nos presentear com outra excelente longa-metragem, Wheel of Fortune and Fantasy, Drive My Car é adaptado de um conto com o mesmo nome publicado no livro de 2014 "Homens Sem Mulheres" de Haruki Murakami. Ou melhor, também se baseia no conto “Xerazade” da mesma obra, quando a esposa do protagonista lhe conta a história da lampreia…
O filme inicia-se com um longo prólogo (40 minutos), que dá conta de um acontecimento dramático que irá mudar a rotina automatizada de Yûzuke Kafufu, um conceituado autor e cenógrafo de teatro cujo universo relacional se cinge quase exclusivamente à sua mulher (uma atípica argumentista com a qual partilha um desgosto que os une numa vivência algo melancólica).
O tempo passa e voltamos a encontrá-lo dois anos mais tarde, ao volante do seu fiel e inseparável amigo de quatro rodas, um Saab 900 Turbo (no qual tem por hábito ouvir longos diálogos, verbalizados pela voz da sua amada, gravados em cassete, como forma de memorizar os textos das peças), a caminho de uma residência artista em Hiroshima, onde irá partilhar com uma audiência de atores de diversas nacionalidades o seu pouco convencional modus operandi enquanto encenador (curiosamente, no filme o Saab é vermelho e não amarelo e não é descapotável, contrariando o conto original). Aí chegado, por motivos de segurança, é confrontado com a proibição de conduzir, pelo que passará a ser transportado por uma jovem motorista enigmática e de "poucas falas" (tal como ele próprio), com a qual irá estabelecer gradualmente uma relação de confiança e partilha de emoções.
Hamaguchi é um autêntico arquiteto de palavras, que desenha um melodrama contido dotado de um arco narrativo fluido e subtil (recorrendo frequentemente a uma espécie de inteligentes jogos de espelhos entre o conteúdo das peças e a vida real), que nos expõe perante um modo diferenciado de lidar com sentimentos como a perda, o ciúme, a vingança e a culpa. Os seus "diálogos não verbais" e os subentendidos, que vão descascando as várias camadas dos seus personagens, são, igualmente, sublimes (pura poesia!). E não menos líricas se revelam as (aparentemente banais) filmagens que se cingem à condução do icónico carro encarnado pelas enormes estradas e túneis do Japão. Um autêntico deleite visual!
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