quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Chris Cleave – A Pequena Abelha

 



Abelhinha (que só no título do livro é nomeada como Pequena Abelha) é uma refugiada nigeriana em Londres; na Nigéria ela experimentou as piores humilhações e o maior sofrimento; mas na Inglaterra os tormentos foram outros; diferentes mas não menores. A burocracia, a rigidez dos costumes e, acima de tudo, o preconceito contra os estrangeiros fizeram da vida de Abelhinha em Inglaterra um novo tormento.

Sarah é uma inglesa de classe média com tudo o que uma cidadã desse estatuto costuma ter num país civilizado: filho, marido, amante e um emprego razoável. Mas nem por isso a sua vida é pacífica; quando não temos problemas de sobrevivência, podemos dar-nos ao luxo de arranjar problemas sentimentais. Para fugir a esses problemas, Sarah e o marido resolveram passar umas férias na Nigéria. Aí conheceram Abelhinha mas a vida do pacato casal britânico sofreria um golpe tão rude que nunca mais se conseguirá recompor.

Um certo humor, construído a partir da ingenuidade da alma africana, dá um pouco de leveza a esta estória, absolutamente triste. O elemento feminino, sofredor e sensível é claramente colocado em oposição ao masculino, egoísta e violento. Na Europa como em África, o homem procura impor o seu poder. Os ingleses, civilizados, apenas escondem a violência em subterfúgios, em aparências; o que em África se faz com catanas e espingardas, em Inglaterra faz-se com computadores e papéis.

Há neste livro ideais a aspetos simbólicos verdadeiramente geniais. Apenas alguns exemplos: no centro de detenção, Abelhinha reflete, perante as marcas de sofrimento que as suas colegas exibiam: “uma cicatriz não se forma naqueles que estão a morrer. Uma cicatriz significa «eu sobrevivi»”. Uma rapariga que acompanha Abelhinha nesse centro transporta um saco de plástico cheio de amarelo. Aos nossos olhos seria um saco vazio e inútil. Mas quem perdeu tudo transposta sempre algo. Nem que seja a esperança; a cor viva da esperança ou de uma réstia de alegria…

Um dia, Oscar Wilde afirmou que só a beleza pode salvar o mundo. Assim descontextualizada, esta frase torna-se vaga. Mas Abelhinha faz-nos compreender Wilde quando afirma: “ninguém gosta de ninguém mas todos gostam dos U2”. A música, a arte, a beleza, são raios de sol neste mundo a que chamam global mas onde as atrocidades persistem.

E o final do livro é outro raio de sol. A maldade persiste; a infelicidade não desaparece mas há as crianças; e com elas a esperança e a beleza nunca morrerão.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Sobre a Inteligência Artificial (AI)


Começou por ser uma brincadeira de nerds, evoluiu para uma ferramenta engenhosa usada por alunos cábulas, derivou para uma atrativa solução empresarial e industrial, afirmou-se como fonte fidedigna de órgãos de Comunicação Social, passou a integrar a máquina de propaganda e desinformação de algumas tribos e, hoje, é encarada como uma séria ameaça ao curso da História, potenciando teorias que anteveem que o fim da espécie humana pode, afinal, não ter causas naturais, mas baseadas na programação informática. A Inteligência Artificial (IA) veio para ficar. Não acabará com o Mundo (esperamos), mas ajudará certamente a mudá-lo. Tentar travá-la apenas porque temos medo terá, provavelmente, o mesmo efeito inconsequente produzido há umas décadas quando nos assustámos com o advento da Internet.

Não conhecemos ainda em profundidade todas as virtualidades desta revolução (e muito menos todos os perigos), mas a melhor forma de enquadrar esta parcela imparável do futuro é recorrendo às leis. E essas ainda são os homens a desenhar.

A União Europeia começou a redigir o “AI Act” há quase dois anos para regular a tecnologia que explodiu após o lançamento do ChatGPT, o aplicativo de consumo com o crescimento mais rápido da História (atingiu os 100 milhões de usuários ativos mensais em poucas semanas).

Neste momento, os legisladores estão a aperfeiçoar o quadro legal, para estabelecer barreiras em função dos níveis de risco: de mínimo a limitado, de alto a inaceitável, abrangendo áreas que vão da vigilância biométrica à disseminação de informação falsa ou ao uso de linguagem discriminatória. O Parlamento Europeu está a fazê-lo de forma sensata, procurando um justo equilíbrio entre os direitos dos cidadãos, o progresso tecnológico e o crescimento económico.

Não censurando o desconhecido, mas preparando as válvulas de escape que melhorem a aculturação de uma realidade que é tudo menos artificial.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Shusaku Endo – Silêncio




Shusaku Endo, falecido em 1996 foi um dos mais conceituados escritores japoneses do século XX. Nesta obra, "Silêncio", aborda um tema polémico e profundo, que tem muito a ver com a nossa história: o trabalho dos missionários portugueses no Japão, nos séculos XVI e XVII. O livro narra a história do Padre Rodrigues, um jesuíta português que partiu para o país do sol nascente procurando um outro missionário, o padre Ferreira de quem se dizia ter apostatado, ou seja, renegado a fé cristã.

A época era de intolerância; enquanto em Portugal e noutros países cristãos se perseguiam e queimavam judeus nas fogueiras da Inquisição, no Japão eram os cristãos vítimas de perseguição impiedosa por parte das autoridades locais, que pretendiam manter o povo fiel ao Xintoísmo e ao Budismo vigentes.

Mais interessados no negócios do que no cristianismo, os japoneses começaram por aceitar benevolamente a presença portuguesa, tendo os jesuítas, liderados por S. Francisco Xavier, conseguido converter milhares de japoneses. Mas no século XVII tudo se modificaria, em parte pela influência que os holandeses e ingleses (protestantes e rivais dos portugueses) moveram junto das autoridades japonesas. Inicia-se então um período de intensa e cruel perseguição, em que os padres missionários e os fiéis eram punidos com castigos arrepiantes e submetidos a torturas inacreditáveis.

No entanto, a questão fundamental não radicava apenas na falta de tolerância. A questão fundamental que Endo coloca ao narrar a incrível história do Padre Rodrigues é a incapacidade que os seres humanos revelam para enquadrar as crenças num espaço cultural próprio, sem o qual elas se revelam inférteis. Como afirma um samurai japonês, o cristianismo era como uma árvore transplantada para um terreno infértil. Impor, mesmo que por benevolência, uma determinada crença é um ato institucional, mais do que de consciência. A Igreja como Instituição nunca conseguiu compreender devidamente este fenómeno: o conceito de BEM, por mais universal que possa ser, não é compatível com normas institucionais que se pretendem universalizar.

Nessa medida, a obra de Endo não perde atualidade nos nossos dias; vemos com frequência governos atuais a tentar impor o nosso conceito de bem, de democracia e de liberdade, sem ter em conta as realidades culturais diversas com que nos deparamos. E nós, no nosso quotidiano, quantas vezes não recorremos a argumentos como estes: “isto é bom para ti”, sem ter minimamente em conta a realidade do outro? Até que ponto o nosso conceito de “bem” ou de “bom” deixa de ser uma ideia subjetiva?

Enfim, um livro que foi para mim uma excelente surpresa, pela sensibilidade que revela sobre um assunto tão complexo e intemporal. O estilo, bastante claro e acessível, faz deste livro um verdadeiro manual de tolerância universal.



No filme que Martin Scorsese adaptou ao cinema, os padres são interpretados pelos atores americanos Andrew Garfield e Adam Driver. Os dois vão ao Japão para procurar um dos seus líderes, o padre Ferreira, interpretado por Liam Neeson, que segundo rumores teria abandonado a sua fé no Japão.

Trata-se de um filme inquietante e perturbador, fiel à história e sem pretensões tendenciosas onde Scorsese faz uma reflexão radical sobre as relações entre o humano e o sagrado.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Tindersticks (Theatro Circo, 7 de Janeiro)





Noite de Inverno em Braga com muita chuva. Momento de comunhão entre artistas, público e palco, numa noite de música bonita. Stuart Staples, o vocalista, é quem marca o arranque das canções em palco. Musicalmente a banda não parece muito diferente da anterior ocasião em que vi a banda, no Coliseu do Porto, em 2003.

O alinhamento do concerto inicia-se com "Willow" (da banda sonora do filme High Life) e "A Night So Still" (do álbum de 2012, The Something Rain).


A sala esgotada respeita o silêncio que a música dos Tindersticks pede. Rejubila no final de cada tema. Alguns músicos vão trocando de posições no palco. A música mantém-se sedutora. A harmonia conjugada com a voz grave de Staples é hipnotizante. A gestualidade controlada, mas nervosa de Staples, em particular a forma quase infantil como os seus pés se movem, sem abandonar o lugar.

Zero palavras para além das palavras escritas nas letras destas músicas, e, porém, a sensação de estar próximo do palco, dos membros da banda, é esmagadora.

Os Tindersticks continuam deliciosamente imemoriais, sem ligar a modas ou pressões externas, nem precisam de se dedicar a espetáculos de recordar é viver. Bastam serem eles próprios.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Leituras do Mês




- Chris CleavePequena Abelha
- Shusaku EndoSilêncio
- Zoran ŽivkovićO Grande Manuscrito
- Yrsa SigurdardóttirCinza e Poeira