sábado, 22 de março de 2014

Richard Zimler - A Sentinela


Este livro de escrita fluida e realista, presenteia-nos com um enredo muito interessante e invulgar e com um ritmo narrativo por vezes impressionante. Muito diferente das obras anteriores, Zimler aqui num registo próximo do policial, em que a personagem principal é um inspector da Polícia Judiciária oriundo do Colorado, EUA, que tenta desvendar um assassinato mas acaba por tropeçar também em abusos sexuais de menores de natureza brutal (e por isso é duro de ler, pela impotência perante descrições atrozes) e casos de subornos envolvendo altas personalidades de Portugal. Aliás, em relação a este último aspecto, o autor caracteriza o estado actual do nosso país de uma forma crua e real, chegando ao ponto de fazer referência a alguns casos sobejamente conhecidos, não se inibindo de expor a corrupção e os abusos de poder nas altas esferas políticas.

Monroe, o tal inspector, vive assombrado pelo seu passado. Vítima de violência física e psicológica na sua infância por parte do pai e sentindo-se abandonado pela mãe desde os 14 anos (quando esta morreu num acidente de viação), tem no irmão Ernie (que atravessa um calvário ainda maior) um companheiro nesta revolta pessoal pelo sofrimento que o acompanha desde a infância. Por isso a componente psicológica é fulcral, e aumenta quando se toma conhecimento de que o distúrbio de personalidade múltipla acompanha-o desde os 8 anos, altura em que Gabriel (“G”) – a Sentinela - lhe surgiu pela primeira vez. G será uma presença constante na sua vida e constituirá uma valiosa ajuda na resolução de casos. Desta forma a trama intercala a postura de homem de família, bom colega e bom profissional, para subitamente acordar o seu lado mais revoltado e cruel (G). Esta combinação de dor com cenas mais calmas de puro amor familiar e filial aumenta a complexidade da personagem sendo estes retrocessos da acção até à infância dos dois irmãos, descritos de forma pungente. A necessidade de ternura e afecto chegam a ser um pouco exagerados:

O absurdo de acenar aos meus filhos mesmo quando estavam a poucos metros de mim nunca deixou de dar a sensação de ter penetrado num mundo de ternura onde só podem acontecer coisas boas.”

"Ser pai é para mim uma constante surpresa. Provavelmente porque tudo parece passar demasiado depressa."

O assassinato do empresário Coutinho, o tráfico de influências, os abusos de menores (“a crueldade nunca sai de moda”), os dois suicídios, a vida familiar, a cidade de Lisboa como pano de fundo, o Black Canyon no Colorado, os anúncios de publicidade do Jorge, as angústias do protagonista, a homossexualidade, o Om (ॐ), os pequenos poemas Haikus, os dois tiros (na perna e ombro), sucedem-se e o final seria inesperado se se tratasse de um vulgar policial…

As referências encontradas ao longo da obra vão desde a literatura (Philip Roth e “Casei Com Um Comunista”; poemas de Pablo Neruda; Isabel Allende; Dickson Carr; Raymond Chandler; “Queimada” de P.C. Cast + Kristin Cast; o livro “Deaf People in Hitler's Europe”), à música (P.J. Harvey; The Killers; Carlos Gardel; Bing Crosby; The Shirelles; The Chordettes; Andrew’s Sisters e o álbum Lungs de Florence + The Machine, especialmente a canção Dog Days Are Over e o seu primeiro verso: Happiness hit her like a train on a track - a felicidade atingiu-a como se fosse um comboio descontrolado) a figuras da sociedade e do mundo de negócios (com nomes de 4 ministros do actual governo, Mariza, Fernando Gomes, Américo Amorim, Paula Rego, Júlio Almeida, Carlos Botelho, Miguel Relvas e Isaltino Morais).

Para memória futura:

Porque obrigar uma pessoa a escolher entre aqueles que ama é a melhor forma de a destruir.”

“- Portugal… - disse ele, abrindo os braços como se para abraçar o país inteiro – é o país onde as regras não passam de sugestões!”

O nosso sistema de filtragem está gravemente avariado: em vez de rejeitar as pessoas mais corruptas, o aparelho político permite-lhes subir até ao topo.”

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