quinta-feira, 26 de março de 2015
David Lodge – A Vida em Surdina
Este romance proporciona uma leitura agradável devido à fluidez linguística e à forma muito real e palpável como os assuntos são abordados. Extremamente hilariante, dada a forma ora séria ora despreocupada como o personagem encara a sua realidade, este é um livro que se lê de um fôlego sem grandes necessidades de pararmos para pensar. À semelhança de outras obras já lidas do mesmo autor, também nos faz soltar grandes gargalhadas devido à forma tão british como os personagens usam e abusam de humor e ironia e abordam as questões da sua vida e as da própria sociedade.
Desmond Bates é um recém-reformado professor universitário de linguística de 61 anos, tem uma cultura acima da média, uma mente lúcida, um sentido de humor agudo e contagiante, mas com problemas sérios de surdez que aliados à sua constante monotonia dão origem a diversas peripécias trágico-cómicas, despertando empatia no leitor. Segundo este personagem, o quadro de Goya, The Dog (1819-1823), apresentado abaixo, simboliza a surdez, que “é cómica enquanto a cegueira é trágica”.
Aliás, é impressionante a quantidade de trocadilhos e confusões geradas na comunicação, o que deve ter dificultado o trabalho da tradutora, obrigada a recorrer por diversas vezes a notas de rodapé. A título de exemplo eis algumas frases “ouvidas” por Desmond:
“Pois foi, estávamos perto cacafone. Hermafrodita, mas infelizmente o purismo eu cabidela.”;
“A última vez que fodi a franga tive tanto calor que passámos a maior parte do tempo nas águas furtadas”.
A narrativa varia entre a primeira e a terceira pessoa do singular e procura-se essencialmente uma dignidade para a surdez. Trata-se de uma espécie de diário, onde Desmond regista os acontecimentos que marcam os seus dias e as reflexões que os mesmos lhe suscitam. É quase um recurso terapêutico, uma forma de racionalizar e dissecar as mudanças que a sua vida tranquila sofre em consequência das crescentes dificuldades auditivas que o afligem e da reforma a que essas mesmas limitações quase o obrigaram.
No seu dia-a-dia, Desmond tem de lidar com a sua bem sucedida segunda esposa (a quem trata por “você”), com o seu obstinado pai (também surdo) e com uma estudante que o deseja como orientador numa tese de doutoramento com um tema algo invulgar (análise linguística do conteúdo de bilhetes de suicídio). É esta jovem, Alex Loom, que despoleta alguma instabilidade e inquietação na sua vida quando o convida para visitar o seu apartamento e porque para Desmond “a maneira como se trata os livros é uma mostra do seu comportamento cívico”. Quando Alex convida Desmond para a castigar, na sua casa, Desmond imagina-a na obra de Edvard Munch de 1894, Puberty, que passa a significar: “Alex à espera de Desmond para a castigar”.
Outros factos que contrastam com o humor presente em quase toda a obra são o agravar do estado de saúde do pai (o sistema de saúde britânico também é severamente criticado), o relato angustiante da visita a Auschwitz e a descrição das circunstâncias que provocaram a morte da ex-mulher. Além disso, também se encontram referências a música clássica, alguns filmes, locais de Inglaterra, desportos (golfe e ténis), diversa literatura e, claro, a descrição da vida académica, com os seus professores e, tal como no nosso país, com alunos cada vez mais problemáticos.
Como na parte final do livro Lodge assume o carácter autobiográfico da obra, ao terminar a leitura ficámos com a sensação de que todas as situações descritas terão realmente ocorrido. Além disso, obriga-nos, àqueles que não têm problemas de audição, a fazer as nossas próprias reflexões tendo em conta as questões suscitadas e a forma como foram tratadas.
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