terça-feira, 29 de abril de 2014

Khaled Hosseini - Mil Sóis Resplandecentes


O passado continha apenas uma sabedoria: o amor era um erro perigoso, e a sua cúmplice, a esperança, uma ilusão traiçoeira”.

Este livro, marcante e inesquecível, confirma a certeza de que os livros ensinam, educam e nos fazem empreender as mais ousadas viagens. Por alguns momentos tive de interromper a sua leitura, revoltado devido à sua carga dramática com partes terrivelmente chocantes. Está escrito de uma forma acessível que nos toca com palavras profundas e ironicamente belas. Um vislumbre sobre a intolerância e a força da tradição, sobre o que foi ser mulher e mãe no Afeganistão, sobre uma amizade linda entre duas mulheres afegãs, a maneira como elas suportavam tudo tendo uma à outra, e que também aborda docemente a maternidade e por isso também é um livro de amor, esperança e perseverança.

Conta a história de duas mulheres afegãs Mariam e Laila, de duas gerações distintas, cuja vida se cruza (chegam a ser esposas do mesmo marido) no meio das convulsões que afectaram o país no último quarto do século XX e início do século XXI. Ao mesmo tempo a história do país que elas habitam, o Afeganistão, é apresentada: a transição da monarquia para a república com Daoud Khan, o domínio comunista (desde o golpe de Estado de Abril de 1978 a 1992), a invasão soviética (de 1980 a 1988), a entrada dos mujahidin no poder em 1992, mantendo-se conflitos permanentes entre etnias rivais (hazaras, uzbeques, pastunes e tajiques) e diferentes líderes (Ismail Khan, Rabbani, Massoud - que morreu dois dias antes da terça-feira 11/09/2001 - e Dostum), a chegada dos talibans em Setembro de 1996 que se mantiveram no poder até 2003, altura em que o novo presidente Karzai passou a governar.

O livro divide-se em 4 partes. A primeira é dedicada a Mariam, uma menina cuja maior alegria na sua vida tinha o seu apogeu às quintas-feiras, quando o seu pai Jalil a vinha visitar por alguns minutos. Filha ilegítima de um homem rico que tinha três esposas legítimas e nove filhos, cedo conheceu o inferno quando após o suicídio de sua mãe Nana (com apenas 14 anos) foi dada pelo seu próprio pai, em casamento a um homem de 45 anos, de seu nome Rashid, e foi levada da sua pacífica Herat para a capital Cabul.

A segunda parte é dedicada à bela e inteligente Laila que perde os pais aos 9 anos quando se preparavam para deixar Cabul em direcção ao Paquistão e a casa é atingida por um rocket. A solução passou por casar com o marido de Mariam, após ter sido (mal) informada de que o seu amor da juventude Tariq teria morrido.

Na terceira parte as duas mulheres vivem em conjunto com o marido Rashid, um árabe tacanho com mentalidade pré-histórica que vê o ser feminino como objecto cujo único propósito é o de servirem o homem, dar filhos e serem um saco-de-boxe quando as coisas não correm como ele gostaria. Com dezanove anos de diferença, origens, objectivos e visões da vida também diferentes para ambas, no início não se relacionam e até se evitam na mesma casa, mas depois as vicissitudes da vida fazem com que se unam e se defendam conforme possam do marido, um homem violentíssimo. Estabelecem assim uma relação quase de mãe-filha e durante anos suportam os seus maus tratos e o seu único objectivo é conseguirem sobreviver diariamente, especialmente após a malograda tentativa de fuga para o Paquistão. Mariam não conseguiu gerar um filho a Rashid tendo abortado nas diversas tentativas e Laila, a preferida de Rashid, teve uma menina – Aziza – para desgosto de Rashid, apesar de o pai ser Tariq. À segunda acertou na pretensão do marido e gerou o filho Zalmai, através de uma cesariana sem anestesia!

A descrição das barbaridades que as mulheres sofreram devido aos talibans são impressionantes e as regras estabeleciam que se saíssem de casa sozinhas seriam espancadas, não podiam usar jóias, cosméticos nem roupa elegante ou pintar as unhas. Também não podiam frequentar a escola ou trabalhar, nem podiam rir ou mostrar o rosto em público, cruzar o olhar com um homem, falar a não ser que lhe dirijam a palavra. Em caso de adultério seriam apedrejadas até à morte. “Mariam ouviu falar de mulheres que se suicidavam com medo de serem violadas, e de homens que, em nome da honra, matavam as esposas e as filhas se estas tivessem sido violadas pelos militares”.

Nesta altura a fome aumentou de forme acentuada. Mariam vê-se forçada a recorrer ao pai mas fica a saber que já tinha morrido em 1987. Aziza tem de ir para um orfanato. “Morrer de fome tornou-se de súbito uma possibilidade real. Alguns optaram por não esperar por ela. Mariam ouviu falar de uma vizinha viúva que arranjara um pouco de pão seco, o misturara com veneno de ratos, e o dera a comer aos seus sete filhos. Guardara para ela a porção maior”. “Até o homem mordido pela cobra consegue dormir, mas o faminto não”.

Na quarta parte conclui-se a trama que aqui não vou desvendar para manter o interesse de quem pretenda ler o livro. Destaco contudo mais alguns episódios: as referências a “O Velho e o Mar” de Hemingway; o vocabulário farsi abundantemente utilizado (como salaam; shahid; jihad; harami; kolba ou nikka); os seixos; o passeio pelos budas gigantes de Bamiyan (na imagem abaixo), mais tardes destruídos pelos talibans; o filme Pinóquio da Disney; a televisão e cassetes piratas e o poema persa de Saeb-e-Tabrizi dedicado a Cabul que explica o título,

Não se podem contar as luzes que brilham sobre os seus telhados,
Nem os mil sóis resplandecentes
Que se escondem por trás dos seus muros.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

domingo, 20 de abril de 2014

Li o livro, vi o filme


As adaptações literárias para o cinema nunca são exactamente fiéis. Às vezes, é preciso reduzir a trama e deixar de lado detalhes para que os momentos mais importantes caibam nos minutos do filme ou mesmo para que não sejam censurados. Por isso e de uma maneira geral, prefiro sempre o livro. Nos três exemplos que acabei de ler e ver (sempre por esta ordem) gostei imenso tanto do livro como do filme, pois ambos são deliciosos de se ler e assistir. São histórias que divertem quem lê e ao mesmo tempo capazes de nos fazer repensar muitas das nossas atitudes perante os outros.

1) Truman Capote – Boneca de Luxo

Boneca de Luxo, Breakfast at Tiffany’s, no original de 1958 (há expressão inglesa que dê mais gozo pronunciar?) é um romance tocante e singelo sobre a amizade, o amor e as desilusões. Holly Golightly é uma mulher bonita, inteligente, mas viciada, boémia e mundana, que procura o luxo e a luxúria sem renegar os valores tradicionais da província e até vive com um gato. Espirituosa e ternamente vulnerável, inquieta as vidas dos que com ela se cruzam. De uma personalidade frágil e confusa, procura apenas alcançar a sua felicidade, que para ela é um estado de satisfação semelhante à sensação encontrada ao observar pela manhã as vitrines da Tiffany & Co. O narrador, que não revela o seu nome, e que conviveu com ela em Nova Iorque e por ela apelidado de “Fred” por lhe fazer lembrar o irmão, considera-a uma “exibicionista indecente” e “vil impostora”. Durante a sua estadia em Nova Iorque, pois não tem pouso certo por não ser capaz de encontrar um lugar seu, que a faça sentir em casa, é sustentada por amigos do sexo oposto e por Sally Tomato, um mafioso que vive na prisão e que semanalmente lhe passa códigos em formato de previsão do tempo para que Holly transmita aos seus companheiros que estão fora da prisão. Após Nova Iorque é sugerida a passagem de Holly (afinal, Lula Mae Barnes) pelo Brasil, Buenos Aires e algures em África.

No filme de Blake Edwards de 1961, a relação entre as personagens principais altera-se, passando de amizade apenas no livro para o amor romântico no filme. No livro o narrador chama-se Paul Varjak, há a sugestão de que Paul é homossexual e Holly, bissexual. Por isso no filme é criada uma nova personagem no intuito de retirar a homossexualidade de Paul: uma decoradora, sua amante, que o sustenta. Na cena mais caricata, Holly surge a tentar aprender a língua portuguesa com uma grafonola e um disco de 33 rotações, porque planeava fugir para o Brasil com um José da Silva Pereira mas ambos consideram ser “uma língua complicada com 4000 verbos irregulares”. Além disso, o personagem Joe Bell, proprietário de um bar que frequentam, desapareceu no filme. A queda aparatosa no cavalo depois de uma corrida louca no Central Park e a detenção de Holly na sua banheira também são esquecidos. A deslumbrante Audrey Hepburn, no papel de Holly, foi nomeada para melhor actriz e também encanta ao dar voz, na parte final do filme, à canção de Henry Mancini, “Moon River”.


2) Thomas Mann – Morte em Veneza

O amor platónico e a paixão arrebatadora pela beleza são os temas centrais desta obra, escrita de forma eloquente e profunda em 1911. Gustav von Aschenbach é um escritor alemão cinquentão que ao passar por uma crise criativa decide revisitar Veneza. No hotel Lido repara em Tadzio, um adolescente polaco de catorze anos que considera o expoente máximo da beleza. Inicialmente o seu interesse é puramente estético, ou pelo menos é o que ele diz para si mesmo. No entanto, rapidamente se apaixona pelo rapaz de forma intensa e violenta e persegue-o ousadamente pelas ruas e canais de Veneza, mas jamais estabelecem contacto directo. Como permanece indiferente aos rumores sobre uma epidemia de cólera na cidade, o fim acaba por ser previsível e inevitável.

O filme “Death In Venice” de 1971, realizado pelo italiano Luchino Visconti mantém a densidade psicológica do livro, explora eficazmente a beleza de Veneza e diverge ligeiramente da obra escrita ao iniciar-se com a chegada a Veneza sem quaisquer prolegómenos e com o protagonista a passar de escritor a músico fracassado. A tentativa de dissimular a idade com cosméticos pareceu-me bastante exagerada, ficando Gustav com um aspecto patético, apesar de servir para acentuar a irrealidade.


3) F. Scott Fitzgerald – O Grande Gatsby

Esta obra de 1925 passa-se em Nova Iorque (Long Island) durante o Verão de 1922 e conta a história do milionário excêntrico que subiu na vida a pulso, Jay Gatsby (mas nasceu James Gatz), conhecido pelas festas animadas que dava na sua mansão. Os Estados Unidos vivem um período de prosperidade sem precedentes. Vivia-se a era dourada do jazz em toda a sua decadência e excessos, num mundo de aparências. Quem nos conta a história é o seu novo vizinho, Nick Carraway, um jovem comerciante de Midwest, que se torna amigo de Gatsby. Apesar de idolatrarem os ricos e o glamour da época, ambos não se conformavam com o materialismo sem limites e a falta de moral e cultura, que traziam consigo uma certa decadência, o que resulta numa crítica ao sonho americano. A fortuna de Gatsby é motivo de rumores, nenhum dos inúmeros convidados que Nick conhece nas festas de Gatsby conhece muito bem o passado do anfitrião e há suspeitas de actividades ilegais. Nick também visita Tom Buchanan, outro “novo-rico”, um antigo atleta universitário abastado, marido de Daisy, que é prima de Nick. Mais tarde, Nick descobre que o milionário só mantinha estas festas na esperança de que Daisy, seu amor há cinco anos, fosse a uma delas por acaso. No desenrolar da história deparamos com Jordan Baker, George Wilson, dono de uma garagem, a sua mulher Myrtle (mas também amante de Tom), um atropelamento mortal com um carro amarelo, uns óculos gigantes, um assassinato, um suicídio e um funeral com três pessoas.

O argumento do filme de 2013 é bastante fiel ao livro. Tobey Maguire é Nick Carraway, Leonardo DiCaprio é Jay Gatsby e Carey Mulligan é Daisy Buchanan. Como o realizador é Baz Luhrmann há uma preocupação com a banda sonora (The XX, Jack White, Lana Del Rey e Florence + The Machine, entre outros) e com a caracterização dos anos 20 nova-iorquinos ("Roaring Twenties") e as suas exuberantes festas, o que resulta num sentido estético aprimorado com cenários sumptuosos.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

RIP Gabriel García Márquez (1927-2014)


Portugal está condenado a sentar-se de sapatos rotos e casaco remendado na mesa dos mais ricos do mundo.”

G. G. Márquez, 1975

terça-feira, 15 de abril de 2014

Philip Roth – O Animal Moribundo


Este é o décimo primeiro livro que leio de Philip Roth, e seria uma tarefa muito ingrata escolher aquele que me tocou mais profundamente. Para mim, Philip Roth é definitivamente um dos maiores escritores norte-americanos vivos.

Nesta história curta mas ampla nas reflexões que possibilita, é feita uma análise ao amor e erotismo na terceira idade. Passa-se em Nova Iorque e é narrada (a um ouvinte não identificado) por David Kepesh, sexagenário de cabelos brancos, professor universitário, crítico cultural da televisão (sobre o que há de melhor para ver, ouvir e ler) mas também divorciado, pai ausente de um único filho e a viver de modo indecoroso a liberdade sexual conquistada com a revolução cultural dos anos 60 pois considera-se muito vulnerável à beleza feminina. No fundo trata-se de um ser humano que não aceita a sua incoerência e que por isso se vulgariza numa consistência oca.

Kepesh, que sente a velhice aproximar-se e a morte a rondar, tem por hábito seleccionar uma aluna no primeiro dia de aulas para com ela ter um caso no final do ano lectivo. Aos 62 anos, a escolha recai sobre a bela Consuela Castillo, de 24 anos, de origem cubana. Apesar de se tratar de uma relação sem qualquer compromisso formal nem obrigações com o sexo oposto, que o satisfaz sexualmente de forma plena (apesar da quase crueldade que é sentir desejo por alguém tão mais novo), Kepesh vê a sua vida desmoronar-se pois torna-se uma vítima dos mais básicos instintos de posse e ciúme e assim despojou-se do seu realismo e pragmatismo e não pensava noutra coisa que não perder a sua amante. Um ano e meio após o seu início, a estudante seduzida termina a relação pois Kepesh não é capaz de enfrentar a família da sua amante no dia de celebrar o fim da sua licenciatura.

O tempo passa. A passagem do tempo torna Kepesh naquilo em que todos nós nos tornaremos: um animal moribundo. A relação conflituosa com o filho Kenny, que leva uma vida falsamente moral, continua (não faltando uma alusão aos “Irmãos Karamazov”), tal como os encontros com a eterna amante Carolyn e os desabafos com o seu amigo George, que acaba por falecer vítima de uma trombose. Continua a coleccionar namoradas, até que Consuela, já com 32 anos, volta-lhe a telefonar novamente, numa noite de passagem de ano, a pedir para terem uma conversa.

As referências culturais abundam, passando por diversos compositores de música clássica, por um manuscrito de Kafka (que impressionou Consuela), por uma ópera de Puccini, pelo Monte Rushmore, pelo relógio criado em 1812 para medir o andamento musical (metrónomo), pelas pinturas de Balthus, por um quadro de Velázquez (“As Meninas”, reproduzido na imagem abaixo) e um de Amedeo Modigliani (“Le Grand Nu”). Este último constava do postal ilustrado que Kepesh recebeu de Consuelo seis meses após terem terminado a relação e também consta da capa da edição que acabei de ler. Uma curiosidade: o título “The Dying Animal” foi retirado do poema “Death” de William Butler Yeats.


E termino com duas citações para aperitivo de tão lauta refeição:

A única obsessão que toda a gente quer: “amor”. As pessoas pensam que ao amar se tornam inteiras, completas? A união platónica das almas? Eu não penso assim. Penso que estamos inteiros antes de começarmos. E o amor fratura-nos. Estás inteiro e depois estás fraturado, aberto. Aqui não resisti a consultar o original: "The only obsession everyone wants: 'love.' People think that in falling in love they make themselves whole? The Platonic union of souls? I think otherwise. I think you're whole before you begin. And the love fractures you. You're whole, and then you're cracked open."

Será que os homens, uma vez excluído o sexo, continuariam a achar as mulheres assim tão encantadoras?

A adaptação ao cinema pela espanhola Isabel Coixet não me desiludiu. Pelo contrário, o seu filme de 2008, Elegy (“Elegia”) consiste numa adaptação inteligente da obra de Roth, baseada na portentosa interpretação de Ben Kingsley (o eterno Gandhi no papel de David Kepesh) e de Penélope Cruz (Consuela Castillo), com todo o esplendor da sua sensualidade (aqui comparada à figura do quadro "La Maja Vestida" de Goya). Com poucas alterações ao original (até o episódio do tampão é recordado!) e com uma ternura, graça irónica e intensidade erótica, “Elegia” explora o poder que a beleza tem em cegar, revelar e transformar as pessoas…



sábado, 12 de abril de 2014

Peter Hook (Casa das Artes, V. N. de Famalicão, 11/04)



O baixista da mítica banda de Manchester revisitou os álbuns de estúdio “Unknown Pleasures” (1979) e “Closer” (1980). Na primeira parte, o público, na sua maioria com mais de três décadas de idade, foi brindado com sete temas dos mais electrónicos New Order, como “Bizarre Love Triangle” e “True Faith”, num cenário onde se vislumbravam duas gigantescas lonas de pano ilustradas com as capas dos álbums de rock melancólico e depressivo dos Joy Division.

Apesar da voz debilitada e nos antípodas de um vocalista carismático, a actuação enérgica e autoritária de Peter Hook agradou-me pois fui ao concerto sem outra expectativa que não fosse recordar música que marcou, e de que maneira, a minha adolescência.

No total foram mais de duas horas e meia animadíssimas, num ambiente de misticismo e revivalismo e não obstante os três intervalos (a t-shirt do Batman, oferecida ao público no final, não conseguia esconder os 58 anos do performer!), houve uma dança delirante com um fã, um desfecho estonteante com “Transmission” e “Love Will Tear Us Apart” e muito moche mas também alguma desilusão com a ausência da “Atmosphere”.





quarta-feira, 2 de abril de 2014

Leituras de Abril


Eis a minha selecção de títulos para ler durante o mês de Abril:

- Khaled Hosseini - Mil Sóis Resplandecentes
- Philip Roth - O Animal Moribundo
- Nelson Algren - Vidas Perdidas - A Walk On The Wild Side
- Manuel Jorge Marmelo - Uma Mentira Mil Vezes Repetida
- A. M. Dean - Bibliotecário