quarta-feira, 29 de julho de 2015

Fernando Tordo - Biografia Involuntária dos Amantes


A imaginação é a chave que temos para manter a morte fechada no seu quarto escuro.”

Li os seis livros anteriores de João Tordo: O Livro dos Homens Sem Luz; Hotel Memória; As Três Vidas; O Bom Inverno; Anatomia dos Mártires e O Ano Sabático. Em termos de géneros são difíceis de catalogar. De uma forma geral, gosto da beleza da sua narrativa e da forma como cria personagens únicas, inteligentes, consistentes, em ambientes normalmente enigmáticos, densos, melancólicos e muito diversificados de livro para livro.

A ideia que tenho sobre a sua obra é que predomina a errância dos protagonistas, sempre longe do seu país natal (talvez relacionada com a sua frustração pessoal e profissional – o escritor frustrado em O Bom Inverno, o músico de O Ano Sabático, o estudante a quem morre a namorada em Hotel Memória ou o narrador de As Três Vidas a quem morre o pai).

Tal como em outras obras anteriores, nesta Biografia Involuntária dos Amantes, o narrador não tem nome. É um professor universitário de Língua e Literatura Inglesa em Santiago de Compostela, divorciado de Paula, solitário, com um programa semanal de rádio em Pontevedra e pai de uma adolescente problemática de 16 anos, Andrea. Este personagem conhece o mexicano Miguel de Saldaña Paris no Café Universo no centro de Pontevedra, onde figura uma estátua do poeta espanhol Ramon Valle-Inclán (foto abaixo). Miguel, outro poeta, vivia com uma melancolia persistente, especialmente após o acidente com o javali e o relato da sua história no programa de rádio do narrador.


Miguel foi casado uma portuguesa que conheceu numa viagem de comboio – Teresa de Sousa Inútil (o segundo apelido é inventado – “Inútil” foi o título dado ao primeiro livro, que tentou publicar em Paris), que o abandonou após cinco anos de casamento. Posteriormente, Teresa morreu de cancro e deixou-lhe um manuscrito. Como Miguel não tem coragem para ler esse documento pede ao narrador que o faça, o que o vai motivar a descobrir a raiz da amargura e do desencanto com a vida do seu amigo. Este manuscrito, que se revelaria ser apócrifo, ocupa todo o terceiro capítulo (num total de oito capítulos), único que é narrado por Teresa, a personagem mais complexa do romance, que relata parte da sua vida, desde as suas primeiras relações amorosas com Jaime, colega do liceu, e mais tarde com Raul, até às relações pessoais com os pais e o tio Franquelim.

O narrador não nomeado, decepcionado com os actuais alunos pois “…os alunos pareciam-se cada vez menos tocados pela literatura e cada vez mais distraídos pelas banalidades de um mundo tingido de monotonia”, inicia então um périplo que o vai levar a Londres (entrevista Antonia McKay, anterior chefe de Miguel), ao Canadá (conhece Luís Stockman, vizinha de Teresa em Mont-Tremblant e protagonista em O Ano Sabático – este cruzamento de personagens nos romances de Tordo é habitual. Recordo-me por exemplo de Elsa Gorski de O Bom Inverno e O Ano Sabático), a Lisboa (fala com Jaime e visita Franquelim na prisão), e finalmente, o regresso a Pontevedra.

Os dois biógrafos involuntários da obra são: o Benxamín, o bibliotecário que enviou o manuscrito ao Miguel, e que foi o biógrafo involuntário de Teresa e o narrador não nomeado que acaba por ser o biógrafo involuntário do Miguel.

Como habitualmente existe uma forte ligação à cultura anglo-saxónica, com inúmeras referências (Yeats, Eliot, Auden, Joyce, Woolf, Byatt, McEwan, Ishiguro, Amis, Wilde, Pinter, Kane, Marías, Borges, Bolaño, Byron, Kafka, Charles Mingus, Delphine Seyrig e o filme O Último Ano em Marienbad) e o destaque a escritores que fumam: Pessoa, Camus, Kerouac, Cardoso Pires, Mark Twain, Dylan Thomas, Cortázar e Samuel Beckett. Outros episódios de relevo: a lenda de Léonard du Revenant, a fuga do pai da Teresa para Espanha e a seguir a da própria Teresa com o tio; o affair com a amiga da Andrea, Débora; o esquema falso de prostituição; o contrabando de aparelhos de vídeo VHS e o significado simbólico do postal com uma pintura de Edward Hopper, Rooms By The Sea (foto abaixo): “esperar que, mais cedo ou mais tarde, uma porta se abra e se mude de vida”.


No final da história e apesar do tormento das personagens, em conflito com o passado e sem aceitar o presente, a referida “porta” é aberta. Gostei imenso de ler este livro, será um dos meus preferidos do autor, em conjunto com O Livro dos Homens Sem Luz; As Três Vidas e O Ano Sabático.


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